Ataque à ciência: Projeto de lei na Alesp ameaça a carreira de pesquisador em SP

Projeto de lei propõe a extinção da carreira atual de pesquisador científico
© Fernando Frazão/Agência Brasil
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Enquanto a carreira de pesquisador científico completa 50 anos, um projeto de lei ameaça desmontar as bases que sustentam décadas de avanços em saúde, meio ambiente e agricultura no estado de São Paulo. O estado mantém uma rede de institutos científicos independentes das universidades, como Butantan, o Adolfo Lutz, o Pasteur, o Agronômico de Campinas, e muitos outros. Eles são responsáveis por grandes avanços científicos, atuais e históricos, que vão da produção de novas culturas agrícolas, controle de pragas e doenças, ao desenvolvimento de vacinas e conservação ambiental.

Porém, em vez de celebrar esse patrimônio, a ciência paulista enfrenta a ameaça de um de seus maiores retrocessos institucionais. O Projeto de Lei Complementar (PLC) 9/2025, atualmente em tramitação urgente na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), propõe a extinção da carreira atual de pesquisador científico, substituindo-a por um novo modelo com menor estabilidade, sem garantias de progressão por tempo de serviço e sem Regime de Tempo Integral — o que compromete diretamente a continuidade e a qualidade da produção científica nos institutos de pesquisa estaduais.

“Modernização” ou precarização?

Na justificativa do PLC 9/2025, o governo de São Paulo apresenta a proposta como uma “modernização da carreira”, prometendo critérios de progressão que se dizem objetivos, organizados em uma estrutura de 18 posições funcionais, distribuídas em seis níveis. No entanto, a progressão entre esses níveis dependerá da avaliação de uma comissão cuja regulamentação será feita por decreto, ou seja, sob controle direto do Poder Executivo, sem garantias de participação autônoma da comunidade científica. Isso abre espaço para interferências e fragiliza a previsibilidade do processo avaliativo.

A justificativa também menciona que a valorização salarial será vinculada à Referência 12 da Lei Complementar 1.395/2023, que define faixas de remuneração no serviço público. Na prática, isso aproxima o novo modelo da lógica remuneratória aplicada a funções comissionadas, muitas vezes ocupadas por livre nomeação. Essa vinculação fragiliza a estabilidade da carreira e torna os reajustes dependentes de decisão política, o que compromete a autonomia funcional de servidores que deveriam ter atuação técnica independente e, sobretudo, liberdade intelectual.

O novo modelo impõe ainda o subsídio como única forma de remuneração, ou seja, um valor fixo que não incorpora adicionais por tempo de serviço, como quinquênios ou sexta-parte. Isso não representa uma modernização, mas sim um rebaixamento da carreira. Reduz perspectivas de crescimento profissional, desestimula a permanência e impõe, na prática, a busca por complementação de renda.

Além disso, o projeto rompe com o regime de tempo integral, atualmente uma das bases que sustenta a excelência científica dos institutos. Afinal, a pesquisa exige imersão contínua, capacidade de resposta a crises e gestão de experimentos de longo prazo, aspectos que não são compatíveis com jornadas fragmentadas ou vínculos frágeis.

Em vez de fortalecer os institutos de pesquisa, a proposta institucionaliza a precarização da atividade científica e rompe com a lógica de valorização por mérito construída ao longo de cinco décadas. O resultado é um cenário desestimulante para pesquisadores experientes e pouco atrativo para as novas gerações. É um desmonte com efeito cascata: perda de talentos, paralisação de projetos estratégicos e descontinuidade de estudos de relevância nacional e global.

Ausência de diálogo

Tão grave quanto o conteúdo do projeto é a forma como ele foi construído. Apesar de afetar diretamente pesquisadores ligados às Secretarias da Saúde, do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, o texto foi elaborado exclusivamente pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), sem participação da comunidade científica, dos institutos de pesquisa ou da Comissão Permanente do Regime de Tempo Integral (CPRTI), instância responsável por discutir a estrutura e as condições da carreira.

Essa exclusão desrespeita o princípio básico de uma reforma legítima: o diálogo com quem conhece e vive os desafios e as virtudes do sistema paulista de ciência. Além disso, sinaliza que o governo estadual não apenas desconhece a complexidade da atividade científica, mas tampouco valoriza sua contribuição estratégica para o desenvolvimento do estado e do país.

Perdas que não se repõem

A ameaça em curso não é apenas trabalhista. O projeto se insere em um processo mais amplo de esvaziamento dos institutos públicos de pesquisa, iniciado em 2020 com a extinção do Instituto Florestal e da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), além da fusão do Geológico e do Botânico. Também houve congelamento de concursos e progressivo sucateamento da infraestrutura científica.

Essa política coloca em risco acervos de valor inestimável, como os bancos de germoplasma – que conservam materiais genéticos de espécies animais, vegetais e microbianas – e outras coleções construídas ao longo de mais de um século. Em vez de retomar investimentos, recompor quadros técnicos ou modernizar infraestruturas, o estado opta por apagar uma história de excelência científica e colocar sob risco de extinção acervos de valor científico e histórico incalculáveis.

Além disso, o impacto ambiental não pode ser ignorado. As fazendas experimentais, vinculadas a esses institutos, guardam remanescentes importantes de biomas como cerrado, mata atlântica e outros ecossistemas únicos. Esses espaços cumprem dupla função: são áreas de conservação e também cenários de experimentação científica de campo, fundamentais para o estudo de biodiversidade, mudanças climáticas e agricultura sustentável. O risco atual de venda dessas áreas agrava ainda mais a situação da ciência e do meio ambiente.

Resistência da comunidade científica

Diante desse cenário, a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), que representa cerca de 1.500 pesquisadores ativos e aposentados em 16 instituições, deliberou pela rejeição tanto do projeto original, quanto do substitutivo apresentado recentemente. A decisão foi respaldada por votações realizadas em diversos institutos públicos, incluindo o Butantan, o Instituto de Pesquisas Ambientais, o Laboratório de Investigação Médica da Faculdade de Medicina da USP e o Instituto de Tecnologia dos Alimentos (ITAL), onde a rejeição foi unânime.

A mobilização tem ganhado força. Diversas entidades científicas e acadêmicas de prestígio, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), dentre mais de 25 entidades e sociedades civis, se manifestaram contra o projeto. Um abaixo-assinado – que até o momento conta com mais de 16 mil assinaturas – reforça o apelo popular em defesa da manutenção da carreira pública de pesquisa científica no estado.

É preciso interromper a tramitação do PLC 9/2025 e abrir caminho para uma negociação pública, transparente e democrática sobre o futuro da carreira. Sem isso, o que se apresenta como “modernização” será apenas mais um capítulo no desmonte silencioso da ciência pública brasileira. Defender a ciência é defender a autonomia, a estabilidade e a continuidade das políticas baseadas em conhecimento. O que está em jogo não é apenas a carreira de servidores dedicados, mas o direito da sociedade paulista a um futuro baseado em evidências, inovação e justiça socioambiental.

Helena Dutra Lutgens, Presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) e pesquisadora científica do antigo Instituto Florestal, Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

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