Por Antônio Reis*
Ao amigo Donizeti Flor, em memória.
No 10 de dezembro são comemorados o Dia Internacional dos Direitos Humanos e o Dia Universal do Palhaço. Quanto à primeira efeméride, bem sei, desde quando me assumi palhaço, que foi neste dia, em 1948, que uma Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quanto à segunda, desconheço o porquê da data.
Desde sempre, como a maioria dos humanos, tenho simpatia por palhaço, o artista. Seja de circo, de teatro, animador do comércio nos shoppings ou de festinha infantil. Ninguém vive em alto astral 24 horas por dia ou sete dias por semana. Todos os humanos, e até os desumanos, enfrentam doenças na família, dificuldades financeiras, problemas conjugais, dor de barriga, crises existenciais. E nisso reside a grandeza do palhaço.
Só palhaço, talvez o maior profissional das artes cênicas, é capaz de levar dentro de si todas as dores do mundo, mas em troca do pão de cada dia, enfia uma máscara na cara, gruda uma bolota no nariz, se veste com cores berrantes, calça botinas duas vezes maior que o pé e se faz de bobalhão: “O palhaço o que é? É ladrão de mulher”, “Hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor”. É ser humano, muito humano. Demasiadamente humano despertar o riso alheio, enquanto o próprio coração sangra.
No primeiro parágrafo, afirmo que há muito me assumi palhaço. Não o artista circense, pois me faltam talento e competência, mas o palhaço sinônimo de bobo da corte. Aquele a quem ninguém dá uma pataca pela lembrança de que o Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, portanto, um tratado internacional com força de lei no País, tão bem descrito no Artigo 5º da Constituição Federal.
Quando o segundo palhaço pisa a pustulenta milícia que joga um trabalhador de cima da ponte ou que mata um homem preto com 257 tiros de fuzil, os “humanos direitos”, que detestam direitos humanos, recorrem à falácia: “Esse aí é um palhaço, um bobo da corte, que ninguém leva a sério”, um secular argumento equivalente ao atual “tá com dó, leva pra casa”.
O bobo da corte, a exemplo do artista circense, também é obrigado a se mascarar, se fantasiar e sorrir, mesmo quando forças policiais agem para exterminar pretos e pobres; quando um governo e seus sabujos atentam contra a dignidade da mulher e da comunidade LGTB, incentivam o roubo de terra dos indígenas, induzem à exploração do trabalhador, acabam com direitos previdenciários, colocam em risco a saúde pública e conspiram contra o sistema eleitoral: “Eleições livres e honestas constam do artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
Ser palhaço, artista ou bobo da corte, é ter o poder de carregar consigo uma solidão intransferível, igual a uma doença maldita que abate a muita gente, que, mesmo ciente do mal, precisa dissimular. E por falar em solidão, arte e 10 de dezembro, recomendo a belíssima música “Palhaço”, de Egberto Gismonti, uma das coisas mais lindas que esse bobo da corte já teve acesso.
Antônio Reis, é jornalista, fotógrafo diletante e ativista cultural.*