Recordações

Confira o conto “Recordações”, de Adelmo Pinho.
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Estou atordoado, como se tivesse sofrido uma queda. Tenho lesões pelo corpo, mas, não sinto dores. Estranho … não reconheço este lugar … é bonito, com plantas que nunca vi. O céu é de um azul diferente, com vários sóis, lembrando A Noite Estrelada, de Van Gogh.

Posso caminhar entre as nuvens; surreal. Não há casas, prédios ou qualquer construção. A roupa que uso me é estranha: calça e blusa brancas; os chinelos parecem da época da antiga Roma. De longe, vejo crianças correndo e brincando, umas com as outras, felizes.

Perto delas, vejo um homem pardo, com roupas brancas e compridas, cabelos longos e olhos negros. Aproximei-me dele. Seu rosto me era familiar e o seu olhar transmitia paz. Perguntei-lhe: – Que lugar é este? Por que estou aqui? A
resposta não veio de imediato.

As crianças, que mais pareciam anjos, todas vestidas de branco, fizeram uma roda e começaram a girar de braços dados em volta do anfigúrico homem. Em seguida passaram a cantar uma canção lírica que fez minha alma assossegar.

Depois, as crianças se afastaram, como se estivessem levitando, sob o olhar sereno do enigmático homem. Este, então, voltou seu olhar acolhedor a mim e
perguntou: – Como estás? Respondi: – Estou bem, mas confuso; pareço
estar num sonho.

Enquanto falávamos pousou num dos braços do tal homem uma pomba branca, que descera num facho azul de luz. Ele a acariciou e o belo animal se foi. Algumas pessoas passaram e cumprimentaram afetuosamente o meu interlocutor. Perguntei: – Quem é você? Ele, respondeu: – Não importa quem sou ou os meus nomes, mas sim aquilo que represento e transmito.

Digo o mesmo, sobre a sua indagação quanto ao nome deste lugar, que também pode ter mais de um. O importante, para mim, é como se sente ao estar aqui … Disse-lhe, então, que me sentia bem, mas não sabia quem eu era e nem conseguia lembrar do passado … O misterioso homem, fitando-me, disse: – Gostaria de lembrar do passado? Isso pode doer e trazer consequências … digo-lhe que tudo o que fez, certo ou errado, foi por seu livre arbítrio. Respondi-
lhe: – De qualquer modo, assumo o risco, mas gostaria …

Em seguida, o tal homem colocou a mão no meu ombro e passei a ter lembranças, como num filme … Vi-me na infância sendo maltratado pelos meus pais. Estes agiam de forma desonesta no trabalho e perante a sociedade, enganando pessoas.

Com o tempo, passei a agir como eles, magoando pessoas. Casei-me por interesse, por minha esposa ser rica e sempre a trai. Tive dois filhos com ela, os quais me odiavam, porque sabiam que eu tinha relacionamentos extraconjugais e tratava mal a mãe deles. Eu não amava a minha esposa, mas ela a mim, sim.

Meu padrão de vida era de uma família de classe alta, vivia no luxo, morava numa bela casa, tinha bons automóveis e frequentava bons restaurantes. Nunca confiei em ninguém e nem fiz amigos de verdade.

Nessas recordações que magicamente tal homem me proporcionou, percebi a minha vida passar rapidamente, como numa tela de cinema. E o mais trágico: recordei que sofri um acidente. Sobre este, saí de casa à noite, embriagado, dirigindo um automóvel, para encontrar a minha amante, quando fui surpreendido com um ônibus em alta velocidade, que se chocou na parte dianteira do meu veículo.

Fiquei preso nas ferragens, com sangue saindo pela boca, ossos
quebrados e apaguei … Depois de todas essas lembranças, o homem
misterioso chamou-me novamente à consciência, cessando “o filme” da
minha vida.

Com muito carinho, ele me perguntou: – Você mudaria algo do que fez? Vale a pena uma vida sem amor? Em seguida, uma sensação diferente tomou conta do meu ser, passei a chorar como nunca fiz, sentindo remorso pela forma de vida que escolhi.

Em seguida ele segurou as minhas mãos, dizendo: – Desta vez, faça diferente: com amor! Fechei os olhos e ao abri-los novamente, estava em estado de coma no leito de um hospital havia meses, cheio de aparelhos pelo corpo.

A enfermeira em plantão assustou-se com o meu “retorno” e chamou o médico responsável. Este ao me ver consciente e com estímulos, tirou parte dos aparelhos e disse: é um milagre.

Minha esposa foi avisada, veio ao meu encontro e sorriu amorosamente ao ver-me consciente. Percebi que ela notou em mim que algo mudara e me abraçou. Chorei muito, pedi perdão a ela e depois aos meus filhos. Agora somos uma família. Não voltei por acaso!

Adelmo Pinho é articulista, cronista e membro da Academia de Letras de Penápolis e da Academia Araçatubense de Letras.

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